4 de agosto de 2015

NOTAS SOBRE A FILOSOFIA E A TEOLOGIA INACEITÁVEIS DA LAUDATO SI’ - ARNALDO XAVIER DA SILVEIRA

BONUM CERTAMEN

segunda-feira, 3 de agosto de 2015


NOTAS SOBRE A FILOSOFIA E A TEOLOGIA INACEITÁVEIS DA LAUDATO SI’





“O homem foi criado para louvar e reverenciar o Senhor seu Deus e, servindo-O, afinal salvar-se; as demais coisas na face da Terra foram criadas por causa do homem, para ajudá-lo na consecução de seu fim; por isso, deve-se usá-las, ou abster-se  delas, na medida em que conduzem o homem ao seu fim ou dele o afastam”
(Santo Inácio de Loiola – Exercícios Espirituais)




1. Introdução: uma “visão filosófica e teológica do ser humano e da criação” de sabor panteísta e evolucionista.

Entre as reações desfavoráveis à recente Encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, há um aspecto que tem sido pouco considerado nas publicações antimodernistas: sua nebulosa visão filosófica e teológica do ser humano e da criação(n. 130). Entretanto, essa nova Antropologia e essa nova Cosmologia, de sabor panteísta ([1]) e evolucionista, são inaceitáveis à luz da Teologia católica e da sã Filosofia. Com efeito, não é claramente afirmada a absoluta transcendência de Deus (apenas referências de passagem, como no n. 79 ([2])); tampouco a distinção entre a criatura e o Criador, e a noção metafísica da criação ex nihilo, por um ato livre de Deus. 

Estas notas são redigidas com todo o respeito devido ao Sumo Pontífice, mas nas circunstâncias presentes a verdade deve ser desvelada por inteiro, para honra da Santa Madre Igreja  e preservação da integridade da boa doutrina.

Sem menosprezo das críticas já formuladas aos aspectos econômicos, sociais ou científicos do documento ­ no geral bem fundadas ­—, parece-nos que tais aspectos são menos profundos e graves do que essa nova concepção do homem e do universo.


Um estudo mais aprofundado dos princípios metafísicos que inspiraram a Encíclica Laudato si’ haveria de examinar pormenorizadamente cada tese nela defendida, segundo as boas regras da apologética católica tradicional; o que, contudo, não parece necessário nestas breves anotações, que têm, sobretudo, um caráter de pública denúncia e de alerta aos fieis. Não pretendemos apresentar uma análise exaustiva da Encíclica, limitando-nos nestas considerações à visão filosófica e teológica acima mencionada, e destacando alguns pontos que falam por si ao católico de boa formação, que é aquele a quem nos dirigimos.
2. Um misticismo panteísta e evolucionista inspirado em Teilhard de Chardin.

Na Encíclica Laudato si’, o Papa Francisco propõe-se apresentar uma visão filosófica e teológica do ser humano e da criação (n. 130).  A partir dessa concepção do homem e do universo, ele desenvolve, de forma não sistemática mas inegável, uma nova Teologia, uma nova Moral, uma nova Liturgia, uma nova noção dos Sacramentos e da oração, uma nova espiritualidade, e até uma nova Mariologia.  Com base nesses conceitos, oferece também soluções que terminam por propor uma autoridade internacional, por cima dos governos nacionais (cf. n. 175).

Essa visão filosófica e teológica vai na linha do misticismo panteísta e evolucionista do Pe. Pierre Teilhard de Chardin SJ, nominalmente referido no documento (nº 83). Vejamos alguns exemplos:
·      A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal” (n. 83).

Essa afirmação, de sabor imanentista e evolucionista, é muito semelhante ao conceito teilhardiano de “Ponto Ômega”, ponto de unificação da evolução de todos os seres criados, identificado com Cristo. Para não deixar dúvidas quanto à inspiração em Teilhard, a Encíclica remete o leitor para a obra desse Jesuíta, em nota ao pé da página:
·      Coloca-se, nesta perspectiva, a contribuição do Pe. Teilhard de Chardin” (n. 83, nota 53).

E, de fato, são as concepções teilhardianas que nos dão a chave para a leitura do documento e entendimento da nebulosa visão filosófica e teológica do ser humano e da criaçãoque a Encíclica propõe, e de todas as suas consequências. (VER APÊNDICE I).

Não é demais lembrar que as obras de Teilhard de Chardin foram objeto de um Monitum (advertência) do Santo Ofício, de 30.06.1962, no qual é afirmado que seus escritos abundam em ambiguidades e “contêm mesmo graves erros que ofendem a doutrina católica ([3]).   

3. Obscura concepção trinitária

O estranho misticismo da Encíclica reflete-se nas próprias relações entre a Trindade e a Criação:

·      O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos” (n. 238).

·      Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia” (n. 99).

·      Segundo a experiência cristã, todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva (n. 235).

·      “Cristo assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz” (n. 211).

·      “O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente” (n. 233).

4. - Os sacramentos: matéria divinizada

Na Encíclica, essas concepções, que parecem divinizar o universo material, como que “sobrenaturalizando” a matéria, refletem-se numa nova Teologia dos Sacramentos e numa nova Liturgia:

·      “Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num plano diferente” (n. 235).

·      A Sagrada Eucaristia (Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo) é caracterizada pela Encíclica como “um pedaço de matéria”:

·      A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria (n. 236).

A Eucaristia é apresentada ainda como um “ato  de amor cósmico” que envolve todo Universo:

·      Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico” (n. 236).

Em termos teilhardianos, o Universo, saído de Deus, voltaria para Deus pela progressiva unificação de todos os seres materiais, inclusive o homem. Assim é reconstituído em sua inteireza o todo primevo. Nessa linha de pensamento, não só Deus cria o Universo, mas o Universo recria a Deus.

A Encíclica diz, citando o patriarca cismático Bartolomeu de Constantinopla:

·      “Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão ... É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta»”  (n. 9).

5. - “Espiritualidade ecológica

Ao longo do documento, a “ecologia”, o “meio ambiente”, a “natureza” são apresentados como absolutos pelos quais se deve pautar toda a atividade humana – moral, espiritual, econômica, educacional, etc. Com base nesses princípios, Francisco propõe uma “espiritualidade ecológica”:
Apêndice I

Teilhard,
o que dizes de ti mesmo?
O panteísmo explícito de
Teilhard de Chardin

Recordemos brevemente o pensamento de Teilhard de Chardin naquilo que tem de mais essencial, destacando o que está, de um modo ou de outro, subjacente ao texto da Encíclica Laudato si’.

1.                 Teilhard: “Sou essencialmente panteísta de pensamento e de temperamento

O próprio Teilhard afirma seu panteísmo em vários escritos. Entre estes, na carta de 14.01.1954:

·   Não admito a posição ‘antipanteísta’ que me atribuís. Eu sou, pelo contrário, essencialmente panteísta de pensamento e de temperamento: e eu passei toda a minha vida gritando que há um verdadeiro ‘panteísmo de união’ (Deus omnia in omnibus) (um pan-cristão, dizia Blondel) em face do pseudo-panteísmo de dissolução (oriental), Deus omnia. E, neste capítulo, não encontro em mim nenhuma simpatia pelo Criacionismo bíblico (exceto na medida que este fundamente a possibilidade de União). Do  contrário, eu acho a idéia da criação bíblica mais bem infantil e antropomórfica” (a).

Como já diziam os gregos e como repete São Paulo, tudo está em tudo. A expressão é perigosa, porque, mal entendida, levaria ao panteísmo. Seu verdadeiro sentido é que Deus é a causa eficiente de todas as criaturas (porque as criou e as sustenta no ser), e delas é igualmente a causa exemplar e a causa final. Os seres criados são verdadeiros seres, como têm verdadeiras essências, verdadeiras propriedades, etc. Mas o ser, a essência, as propriedades, etc., do ser criado são tão diferentes das de Deus, que essas palavras se aplicam analogamente a Deus e às criaturas. É essa analogia que marca a rejeição de qualquer panteísmo na doutrina católica, ao mesmo tempo que explica o verdadeiro sentido do princípio omnia in omnibus.

Em outra carta, de 02.01.1951, Teilhard propõe

·   Uma forma superior e sintética de ‘misticismo’, no qual a força e a sedução do panteísmo oriental convergem numa culminância!(b).

Ele explica seu objetivo:

·   O  que  eu  proponho  fazer é reduzir a distância entre o panteísmo e o cristianismo, mostrando aquilo que se poderia chamar de alma cristã do panteísmo ou o aspecto panteísta do cristianismo(c).

Parafraseando Tertuliano, que disse que a alma humana é naturalmente cristã, Teilhard de Chardin afirma que ela  é naturalmente panteísta.

·   A tendência ao panteísmo é tão universal e tão persistente que deve haver algo nela, uma alma (uma alma naturalmente cristã), uma verdade que clama pelo batismo” (d).

Ele pretende criar uma nova “espiritualidade” cristã-panteísta:

·   Em relação ao meu ‘Evangelho’ … minhas possibilidades e tendências … [são] de ajudar a criar uma  atmosfera espiritual … Isso, é evidente, é uma atitude essencialmente cristã, mas enriquecida pela confluência da melhor e mais sutil essência daquilo que está escondido por trás de vários  panteísmos(e).

Em carta à sua amiga Lucille Swan ele de novo reafirma seu panteísmo:

·   Eu sou antes e essencialmente um panteísta nato!(f).

2. Cristo: “centro último para o qual caminha toda a evolução”

J. L. Illanes Maestre, professor de Teologia Dogmática na Universidade da Na-varra, Espanha, em artigo sobre Teilhard de Chardin, depois de descrever o evolucionismo do Jesuíta e falar do “ponto Ômega”, sintetiza:

·   Postulada   assim   a   existência   de Deus como princípio cósmico de convergência, Teilhard termina de expressar seu  sistema sobrepondo ao ponto Ômega da evolução o  Cristo da Fé. Cristo é, pois, apresentado por Teilhard como Deus que se submerge nas coisas e se introduz no psiquismo total da terra e, dessa forma, se converte no centro último de reunião universal para o qual caminha toda a evolução (g).

Tratar-se-ia de um pan-psiquismo em que o espírito está imerso na matéria, da qual vai-se libertando aos poucos pelo processo evolutivo propulsionado por Cristo.
____________________
(a) Apud A.M. y C.C., Teilhard de Chardin, Pierre – Opera omnia. Disponível em http://www.opuslib ros.org/Index_libros/Recensiones_1/teilhard_obr. htm
(bCarta de Paris, de 02.01.1951, in Cartas a Dois Amigos, https://archive.org/stream/LettersToTw oFriends/Letters_To_TwoFriends_djvu.txt
(cCristianismo e Evolução, p. 56, in https://ar chive.org/stream/ChristianityAndEvolution/Chri stianity _and_Evolution_djvu.txt
(d) The Heart of the Matter, p. 207, in https://archi ve.org/stream/Heart_OfMatter/Heart_of_Matter_djvu.txt
(e)  idem, ibidem.
(g)  J. L. Illanes Maestre, Teilhard de Chardin, Pierre, in Gran Encclopedia Rialp, Ed. Rialp, Madrid, 1975, vol. 22, p. 138.

·      Desejo  propor  aos cristãos algumas
linhas  de   espiritualidade   ecológica que nascem das  convicções da  nossa
fé, pois aquilo  que o Evangelho nos ensina tem consequências  no  nosso  modo de pensar, sentir e viver (...); não é possível empenhar-se em coisas  grandes  apenas  com  doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem «uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária» [Evangelii Gaudium, 261] .... Temos de reconhecer que nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo, nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o que nos rodeia” (n. 216).

O Papa pede uma “conversão ecológica” e apresenta o ecologismo como estando na essência da vida virtuosa:

·      “(...) a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior, (...) uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia [os cristãos], todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa (n. 217).

 Essa “conversão ecológica” implica a consciência de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal” (n. 220). Essa “espiritualidade ecológica” faz-nos sóbrios, humildes, sem o desejo de dominar (cfr. nn. 224-225) e nos ajuda a ouvir as “palavras de amor” da natureza (cfr. n. 225).

6.  Uma nova Mariologia ecológica

Essa nova “espiritualidade” modifica também a devoção a Maria Santíssima numa clave ecológica:

·      Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano (n. 241). 

7.  Apelo a um “mestre espiritual” da Gnose islâmica

O Papa Francisco cita em abono de sua nova “espiritualidade ecológica” um “mestre espiritual” da Gnose islâmica sufista:

·      Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, (...) dizia: «(...) Os iniciados chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos …»” (n. 233, nota 159).

8.  A terra tratada como ser vivo

Em vários lugares a Encíclica trata a terra, a natureza e o ambiente como se fossem seres racionais ([4]):
·      Esta irmã [a terra] clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.” (n.  2).

·      Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rom. 8, 22)” (n. 2).

Note-se o emprego da categoria marxista do  “pobre” como “oprimido”.
·      A Encíclica recomenda uma abordagem ecológica para se “ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (n. 49).

·      Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo” (n. 53).

A Encíclica fala num “relacionamento interior” do homem consigo mesmo, “com os outros, com Deus e com a terra” (n. 70). E, mais adiante, diz que o Levítico procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser  humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava” (n. 71). Ora, só há relações de equidade entre seres racionais, entre pessoas. Assim, segundo a Encíclica, o homem deixa de ser o Rei da criação corpórea (ver APÊNDICE II).

9.  Concluindo

Por tudo quanto acabamos de analisar, a “visão filosófica e teológica do ser humano e da criação” apresentada pela Encíclica é incompatível com o dogma católico e com a sã filosofia, e portanto inaceitável. É o que lamentamos sermos obrigados a apontar, ressaltando que é inaceitável não só pelos graves erros que contém mas também por suas insinuações, ambiguidades, omissões, unilateralidades, todas elas orientadas no sentido do favorecimento de uma cosmovisão panteísta.

Como se vê, não se reconhece na Encíclica Laudato si’ a voz fiel, suave e firme do Bom Pastor que a Igreja sempre nos apresentou. Não se reconhecem, igualmente, os traços sobrenaturais dos ensi namentos de São Paulo, segundo os quais não pode ser recebido outro Evangelho, ainda que anunciado por “um anjo baixado do céu([5]).

Pergunta-se: um documento oficial da Igreja, com a solenidade de uma Carta Encíclica, pode merecer reservas de tal porte, sem que com isso estejam abalados os princípios da indefectibilidade da Igreja e da infalibilidade do Magistério? Em meu trabalho sobre a Hipótese Teológica de um Papa Herege ([6]) abordei esse assunto.

Resisti-lhe em face, porque merecia repreensão”. Com essa frase o Apóstolo São Paulo justifica sua resistência a São Pedro a respeito da observância dos ritos judaicos pelos cristãos.

Será legítimo, em casos extremos, opor-se a ensinamentos papais não garantidos pela infalibilidade ou resistir a decisões do Soberano Pontífice? Respondendo a essa pergunta, transcrevemos a seguir alguns textos relativos à resistência pública a atos do Papa.

·         Santo Tomás de Aquino ensina, em diversas partes de suas obras, que em casos extremos é lícito resistir publicamente a uma decisão papal, como São Paulo resistiu em face a São Pedro: “(...) havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser arguidos, até mesmo publicamente, pelos súditos. Assim, São Paulo, que era súdito de São Pedro, arguiu-o publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em matéria de Fé. Como diz a Glosa de Santo Agostinho, ― “o próprio São Pedro deu o exemplo aos que governam, a fim de que estes afastando-se alguma vez do bom caminho, não recusassem como indigna uma correção vinda mesmo de seus súditos” ([7]).

·         Francisco Suarez, SJ (1548–1617)  “Se [o Papa] baixar um ordem contrária aos bons costumes, não se há de obedecer-lhe; se tentar fazer algo manifestamente oposto à justiça e ao bem comum, será lícito resistir-lhe; se atacar pela força, pela força poderá ser repelido, com a moderação própria à defesa justa (cum moderamine inculpatae tutelae)” ([8]).

·         São Roberto Bellarmino, SJ (1542-1621) – “(...) assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior” ([9]).

·         Cornélio a Lapide, SJ (15671637) Mostra o ilustre exegeta que, segundo Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Beda, Santo Anselmo e muitos outros Padres, a resistência de São Paulo a São Pedro foi pública, para que, desse modo, o escândalo público dado por São Pedro fosse remediado por uma repreensão também pública ([10]). Depois de analisar as diversas questões teológicas e exegéticas suscitadas pela atitude assumida por São Paulo, Cornélio a Lapide afirma que os superiores podem ser repreendidos, com humildade e caridade, pelos inferiores, a fim de que a verdade seja defendida; é o que declaram, com base nesta passagem ([11]), Santo Agostinho ([12]), São Cipriano, São Gregório, Santo Tomás. Eles claramente ensinam que São Pedro, sendo superior, foi repreendido por São Paulo com razão, pois, disse São Gregório ([13]): Pedro calou-se a fim de que, sendo o primeiro na hierarquia apostólica, fosse também o primeiro em humildade.
Apêndice II
O homem deixa de ser o Rei da criação corpórea

A Encíclica Laudato si’ afirma ou insinua, em várias passagens, sem as necessárias distinções, que os seres não racionais dão glória a Deus por si mesmos, por existirem, e que o  homem deve levar isto em conta, e não os tratar sem o respeito devido.

1.     - A doutrina tradicional

Não há dúvida de que todos os seres irracionais dão uma glória a Deus que os teólogos chamam objetiva. Mas por meio do homem eles participam da glória formal que o homem dá. São como um instrumento magnífico por meio do qual o homem toca uma harmoniosa sinfonia de glória a Deus. Segundo a interpretação tradicional do livro do Gênesis e o princípio enunciado por Santo Tomás de Aquino de que o menos perfeito existe para o mais perfeito (II-II, q. 64, a.1), o homem sempre foi visto como Rei da Criação corpórea. Assim se expressa H. Pinard no verbete Création, no Dictionnaire de Théologie Catholique:

·     “... todos os Padres [da Igreja] e os teólogos consideram o homem de fato como o coroamento providencial do mundo sensível: tudo está ordenado para ele uma vez que sem ele as coisas não atingiriam a sua finalidade; a natureza não teria voz para louvar a Deus ... O homem foi criado por último, dizem os Padres, precisamente porque convinha, antes de introduzir o rei do universo, que tudo estivesse preparado” (III, col. 2172).

O Pe. José F. Sagües S.J., em seu tratado De Deo Creante et Elevante, diz com precisão:

·      A nossa afirmação (...) de que o mundo existe por causa do homem, e certamente para que o sirva em ordem à glorificação de Deus, é de fé divina e católica; e se se toma em relação a cada uma das coisas que existem no mundo, é verdade certa em teologia.” (Sacrae Theologiae Summa, v. II, Tractatus II, n. 204).

2.       A nova doutrina

A Encíclica vai mudar este enfoque tradicional. Logo no segundo parágrafo a ideia do domínio do homem sobre a terra é contestada:

·     Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la” (n. 2).

Note-se o subterfúgio: ligar a noção vinda do Gênesis, de que o homem deve  dominar a terra, com a de “saqueadores”. Esse mesmo recurso será usado adiante para desfazer a clareza do mandato do livro sagrado:

·     Deus os abençoou: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." (Gen 1,28).

Diz a Encíclica:

·     Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas.” (n. 67).

A Igreja nunca ensinou que o domínio do homem sobre a natureza e os animais fosse absoluto, no sentido de que ele  pudesse fazer o que quisesse, sem levar em conta o fim último de todas as coisas. Mas, ao dizer  que antes se interpretava “algumas vezes” incorretamente as Escrituras, fica sugerido que a doutrina clássica do domínio do homem sobre a natureza decorria de más interpretações no passado. Essa ideia é reforçada adiante:

·     Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade...” (n. 69).

Segundo o mesmo texto, existe uma “reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza.” (n. 67). Como pode haver reciprocidade e responsabilidade entre o “ser humano” (racional) e a “natureza” (irracional)?

Mais adiante, a Encíclica também liga artificiosamente  o “domínio” com a “arbitrariedade”:

·     Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano” (n. 82).

Em nenhum lugar a Encíclica menciona o homem como rei da criação, mas insiste em depô-lo dessa condição. Assim, no n. 68 (in fine) afirma que “a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas.”

Em suma, a Encíclica apresenta o homem não como o dominador da natureza, do mundo sensível, o qual usa  para dar glória a Deus, mas praticamente inverte essa ordem e põe o homem não como dominador mas como servidor da natureza sensível à  qual deve obedecer e submeter-se.


10.  Post scriptum

As presentes Notas já estavam redigidas quando  chegou  a   nosso  conhecimento
uma  entrevista   concedida   por   e-mail pela  Professora  Deborah  Terezinha  de Paula à Revista IHU on-line,  do Instituto Humanitas da UNISINOS, publicada sob o título Laudato si’: um texto impregnado de Teilhard de Chardin. A entrevistada é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é Mestre em Ciência da Religião, e recentemente defendeu a tese de doutorado “Diafania de Deus no Coração da Matéria: a Mística de Teilhard de Chardin”. É relevante o fato de que a entrevista foi concedida a um órgão da Universidade UNISINOS, dirigida pelos padres jesuítas do Rio Grande do Sul, que a acolhe com calor, e que, em 2005, promoveu simpósio de grande repercussão nos meios especializados, por ocasião do cinquentenário da morte de Teilhard, tudo a revelar a comprometedora adoção, por círculos católicos de projeção, e em especial pela UNISINOS, das teses de Teilhard de Chardin.

Teilhard presente nas entrelinhas da Encíclica

A revista da UNISINOS observa que o pensador francês está muito presente nessa Encíclica, e reporta que a entrevistada  “revela  que  o   pensamento   do místico aparece não só nas citações diretas”. É como se estivesse nas entrelinhas“, escreve a própria Professora Deborah. E prossegue: “quando o Papa destaca a presença de Deus nos elementos da natureza, tem-se a impressão de estar ouvindo o próprio Teilhard”; e ainda: “o próprio título da Encíclica, que nos convoca a um louvor universal mediante um cuidado com a casa comum, me lembra Teilhard de Chardin”.

O Cristo Universal

Escreve a entrevistada: “O Cristo Universal de Teilhard não é um novo Cristo, mas o mesmo Cristo da Fé evangélica”. E ainda: “É o homem nascido de mulher, menino nascido em Belém, Deus que pela Encarnação assumiu o mundo material para elevá-lo consigo. É o jovem que desafiou o poder em defesa dos mais fracos, pagando com a própria vida o preço por sua ousadia. É aquele que pela Ressurreição habita e ilumina agora todo o ser. É o Cristo que, tendo passado pelo mundo, agora habita o cosmo, convocando todos nós a uma conversão de amor”.

Prossegue a Professora Deborah:Quando fala no dever humano de colaborar com o Criador na obra da Criação (LS 14, 124ss), o Papa certamente retoma Teilhard, que diversas vezes falou desse dever, que ele entende como um dever sagrado. Quando nos damos conta da ligação que nos une a tudo quanto existe, enfim, quando cresce em nós aquilo que o místico francês definiria como senso cósmico, chegamos pois à percepção de nossa natureza molecular”.

Escreve a Professora Deborah:Teilhard assume a evolução como pano de fundo de sua explicação de mundo. Em Comment je crois, ele sintetiza seu credo da seguinte maneira: «Eu creio que o Universo é uma Evolução. Eu creio que a Evolução ruma para o Espírito. Eu creio que o Espírito se completa no Pessoal. Eu creio que o Pessoal supremo é o Cristo Universal»”.

Dado o teor radical desses textos, não se pode deixar de perguntar se a evolução, partindo da criação e seguida pela Encarnação, não passaria pelo estágio em que, como diz a Professora Deborah, Cristo “agora habita o cosmo”, e, por um processo de maturação de “conversão de amor”, chegaria, como se lê na Encíclica,  à plenitude transcendente” de Deus, “onde o Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina”, o “Cristo Universal” de Teilhard de Chardin (n. 83). Como se vê, toda a linguagem de Teillhard de Chardin e de seus seguidores é um conjunto de metáforas literárias e confusas que visam disfarçar suas doutrinas de fundo panteísta. Chamam isso de mística, ao passo que a verdadeira mística católica é clara, inteligível, inserindo-se na lógica e na racionalidade da Escolástica. 

Um panteísmo cristão?

Escreve a entrevistada: “Essa singular capacidade de ver Deus em todas as coisas, esse profundo acolhimento da espiritualidade paulina do Deus tudo em todos, acabou fazendo com que a mística teilhardiana fosse erroneamente associada às místicas panteístas pelas quais o próprio Teilhard se diz seduzido”.

Ainda a entrevistada: “Em seu processo de evolução interior ele se sentiu tentado pelo panteísmo e, homem da harmonia por excelência, trabalhou arduamente no sentido de refutá-lo e ao mesmo tempo integrá-lo à sua visão de mundo. Em sua autobiografia ele fala do risco por ele enfrentado não do panteísmo, mas da perda em «[...] uma forma inferior (a forma banal e fácil) do Espírito panteísta: o panteísmo de efusão e de dissolução [...]. Para ser tudo, me fundir com tudo». Esse tipo de panteísmo é rejeitado pelo místico que, captando Deus no mundo, não identifica Deus e mundo. Enquanto o panteísmo seduz pela ideia de uma união perfeita onde as diferenças seriam anuladas, na mística teilhardiana as diferenças são valorizadas. O Criador, tal como pensado pelo jesuíta, abraça as criaturas, mas seu abraço não as absorve em si. A verdadeira união não faz perder a personalidade. É necessário unir-se a um outro sem deixar de ser o que se é. E, na verdade, explica o religioso do Auvergne, esta é a aspiração de toda mística: «[...] unir-se (isto é, tornar-se o Outro), permanecendo si-mesmo», aspiração que, no entendimento de Teilhard, só o cristianismo salva através da pessoa de Cristo, o humano-divino que sem deixar de ser Deus é homem e sem deixar de ser homem é Deus”.

Teilhard teria ganho voz e vez em Roma

A propósito do Monitum publicado pela Santa Sé em 1962 contra as obras de Teilhard, escreve a entrevistada que  os escritos dele “passaram e hoje ganham voz e vez no próprio ambiente que tentou silenciá-lo, sinal de novos tempos, de uma Igreja capaz de se deixar vivificar pelo Espírito que sopra onde quer. Já antes da Laudato si’, dois pontífices haviam retomado Teilhard: João Paulo II e Bento XVI; mas nenhum deles numa encíclica, e de forma tão contundente. Se houve uma única referência direta ao Padre Teilhard, eu diria que a Carta [Encíclica] está toda impregnada por seu pensamento”.



[1]  Panteísmo: como o próprio nome diz, é a doutrina segundo a qual tudo é Deus. Variam as construções doutrinárias das diversas correntes panteístas.
[2]  Seguimos o texto e a numeração dos parágrafos da tradução para o português (de Portugal), tomada do website da Santa Sé (Carta Encíclica Laudato si’, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado da casa comum, 24 de maio – Solenidade de Pentecostes de 2015). Subsidiariamente, recorremos aos textos publicados no Brasil pelas Editoras Paulinas e Loyola, São Paulo, 2015. As referências aos textos da Encíclica se farão exclusivamente com a indicação dos números dos parágrafos; por exemplo: (n. 239).  
[3]  Apud A.M. y C.C., Teilhard de Chardin, Pierre - Opera omnia. Disponível em  http://www.opuslibros.org/Index_libros/Recensiones_1/teilhard_obr.htm
[4]  É verdade que muitos místicos autênticos, e mesmo as Sagradas Escrituras, muitas vezes usam de uma linguagem  antropomórfica, ao se referir às criaturas inanimadas ou irracionais. Mas o contexto ecológico-panteizante da Encíclica faz com que esse recurso metafórico se torne suspeito.
([5])  São Paulo, Gálatas, 1,8.
([6])  In Considerações sobre o ‘Ordo Missae’ de Paulo VI, edição mimeografada, 1970, São Paulo; publicado em francês sob o título  La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser? (Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, Vouillé, França, 1975).
([7])  Ad Gal., 2, 14.
([8])  De Fide, disp. I, sect. VI, n. 16.
([9])  De Rom. Pont., lib. II, c. 29.
([10])  Ad Gal., 2, 11.
([11])  Gal.,  2, 11.
([12])  Epist. 19.
([13])  Homil. 18 in Ezech.

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